quinta-feira, 19 de maio de 2011

O desenvolvimento do JING e a prática do bastão

O conhecimento da teoria do Tai Ji Chuan é imprescindível para que se possa usufruir mais plenamente dos benefícios advindos da prática regular desta arte, cujas origens milenares se confundem com os primórdios da própria medicina oriental. O conceito de CHI, sopro ou energia vital que circula pelo corpo através dos meridianos, é fundamental não só para as práticas de movimento e meditação no Oriente, mas está na base da prática da acupuntura e mesmo da caligrafia e da pintura. O livre fluir da energia pelo corpo é condição importante para a saúde e o bem estar, sendo, por isso, o Tai Ji Chuan e o Chi Kung terapias eficazes de medicina preventiva e corretiva de diversos males advindos de problemas circulatórios, tanto no que se refere à circulação sanguínea, quanto aos sistemas nervoso, linfático e respiratório. Outro conceito igualmente importante para o desenvolvimento da prática do Tai Ji Chuan é conhecido como JING, que pode ser traduzido como essência, força interior. Alguns autores comparam o conceito de JING, tal qual este é concebido no Tai Ji, ao da força do espiral ou força da mola. Na escola Chen de Tai Ji, os mestres caracterizam o JING principalmente como a força ou energia do tecer da seda (Chan Su JING), concebendo poeticamente a imagem do fio contínuo que vai sendo desenrolado em espiral do casulo do bicho da seda.Cabe ao praticante de Tai Ji Chuan que pretende levar a sua prática além de um mero exercício de ginástica calistênica compreender e integrar o conceito de JING em seus movimentos, seja durante o treino das diversas sequências, seja na prática do TUI SHOU, ou mesmo em suas ações e interações do dia-a-dia.

O JING é o resultado da ação da mente (YI) sobreo CHI. Nas chamadas ARTES MARCIAIS INTERNAS,entre as quais destaca-se o TAI JI CHUAN, busca-se transcender a mera força muscular ou LI, privilegiandose a energia intrínseca ou JING. Um ensinamento tradicional do Tai Ji Chuan diz: a intenção da mente ou YI faz mover a energia vital (CHI), produzindo a força intrínseca ou JING, que por sua vez ativa a força externa dos músculos ou LI. Em chinês, costuma-se resumir: YI -> CHI -> JING -> LI. Para alguns mestres rigorosos, Para alguns mestres rigorosos, só após muitos anos de prática intensa pode-se de fato distinguir a energia intrínseca do JING da força extrínseca do LI. Mesmo para muitos praticantes de diversos estilos das Artes Marciais escapa completamente o sentido do JING, considerado, por vezes, um dos segredos dos antigos mestres das escolas internas. Ao discorrer sobre a energia espiralada do JING que se expressa através do LI, o mestre Lun Chin conclui: “ Li é visível, Jing é invisível, Li é linear, Jing é circular, Li é pesado, Jing é ágil, Li é duro, Jing é suave, Li é embotado, Jing é focalizado, Li é força, Jing é poder. Bem versados e hábeis na arte, em plena maestria do Jing sobre o Li, só então compreendemos e apreciamos o maravilhoso mistério do TAI JI CHUAN", Hoje, não há segredos: o praticante de Tai Ji Chuan deve cultivar a energia intrínseca do JING, semelhante àquela que existe na liga da massa do pão, na elasticidade da borracha. Para que o Jing possa desenvolver-se é preciso cultivar o relaxamento profundo das juntas, ligamentos e tendões do corpo. Iniciando-se o movimento na planta dos pés, usando -se o corpo inteiro como uma unidade, sob o controledo DAN TIEN, a energia espiralada se manifesta nas mãos, com sensibilidade e suavidade, mas revelando intensidade e poder. 

Exercícios como o “Tecer da Seda” ou Chan Su Jing ou a prática da meditação na postura(Zhang Chuan), também contribuem para desenvolver o Jing, elevando o poder pessoal do praticante até que, nos níveis superiores de prática, o Jing se transforma em Shen ou espírito. Além de praticado com mãos vazias, o Tai Ji Chuan pode também ser cultivado com a ajuda de instrumentos, tais como o bastão, a lança, o sabre, a espada, o leque. Desses, o mais simples é, sem dúvida, o bastão, que costuma, portanto, ser o instrumento ou “arma” introdutória, após a iniciação na prática com mãos vazias. Conforme apontam Chevalier & Gheerbrandt, o simbolismo do bastão inclui diversos aspectos, mas essencialmente aparece como arma e, sobretudo, como arma mágica; como apoio da caminhada do pastor e do peregrino, como eixo do mundo. A cena de abertura do filme clássico de Stanley Kubrik, “2001, uma odisséia no espaço”, mostra a invenção da tecnologia por um grupo de hominídeos primitivos. Em torno do fogo, nossos ancestrais descobrem que um objeto de forma fina e alongada pode ser usado como extensão da sua capacidade física para manipular as brasas, empurrar objetos e, finalmente, como arma para a defesa e o ataque. A cena que se segue então é uma das mais belas da história do cinema: um dos hominídeos lança o bastão para cima. Este vai girando, lentamente, até transformar-se na nave espacial. Resume-se neste gesto toda a história da tecnologia humana que começa com a descoberta do instrumento mais simples – o bastão. Ao longo da História, o bastão tem assumido diversas formas e funções. Refletirmos sobre a simbólica do bastão pode nos ajudar a compreender e integrar melhor em nossa prática esse instrumento que, se bem utilizado, transforma-se em poderoso aliado para o desenvolvimento energético buscado na arte do Tai Ji Chuan.Os antigos mestres celestes taoístas sãoquase sempre representados segurando um cajado na mão, simbolizando autoridade e sabedoria. Há textos taoístas que se referem, inclusive, a detalhes, tais como o número de nós do bambu, que seria alusivo aos diferentes desafios que deveriam ser superados antes que o iniciado atingisse o conhecimento. Contase ainda em escritos taoístas que o bastão de madeira de pessegueiro teria poderes para afastar os maus espíritos e servia de transporte para a ascensão a mundos superiores. Também no budismo, o khakkhara dos monges é frequentemente retratado como exercendo múltiplas funções: é instrumento de apoio nas caminhadas, eixo para carregar fardos amarrados em suas duas extremidades e, mesmo, arma de defesa pacífica. Posteriormente, tornou-se símbolo do estado monástico e arma de exorcismo, afugentando asincansáveis em chamar a atenção para o movimento influências perniciosas, amansando dragões e fazendo brotar água das fontes. 

No hinduísmo, o bastão bramadanda tinha sete nós, representando os sete chakras da fisiologia ioga, que marcam os sete graus da realização espiritual. O bastão é concebido como o eixo vertebral sushumna, cujo ápice superior relaciona-se ao despertar da kundalini na iluminação do sábio. Entre os antigos gregos, destaca-se o caduceu da cura, o bastão de Hermes, em que se enroscam duas serpentes. No judaísmo, brandindo um cajado, Moisés faz abrir o mar vermelho. Na Idade Média, o cabo de vassoura das bruxas que lhes permite transitar magicamente entre o natural e o sobrenatural não deixa de relacionar-se ao bastão de pessegueiro da ascensão dos mestres taoístas. Também a simbologia da vara de condão das fadas, magos e xamans reforça a mística de instrumento de poder do bastão. Destaque-se ainda o cetro dos reis e imperadores, símbolo de soberania e comando, tanto na ordem social, quanto na hierarquia intelectual e espiritual (cf. Chevalier & Gheerbrandt). Assim, ao iniciar a prática do bastão, devemos ter em mente que este objeto aparentemente tão simples está, de fato, carregado de forte simbologia, presente em todas as culturas, em todas as épocas, tendo, portanto, um enorme potencial para o desenvolvimento pessoal em vários níveis. 

Vamos procurar chamar a atenção, em seguida, para alguns fatores práticos relacionados ao treino com o bastão, que podem ser de benefício na arte do tai ji chuan, mais especificamente, para o desenvolvimento da energia JING. De modo bem prático, pode-se dizer que o desenvolvimento consciente da energia JING deve ser o objetivo central do praticante de Tai Ji Chuan. O cultivo do JING está diretamente relacionado ao princípio de integração e unidade entre as partes. Daí a metáfora da massa do pão que só atinge o ponto de JING quando encontra sua “liga” elástica, as partes não se desprendendo mais do todo. Um dos princípios clássicos do Tai Ji Chuan diz que “quando uma parte se move, tudo se move”. Os mestres de Tai Ji são do eixo central ou Zhong ding. Este conceito central de integração e unidade encontra a sua expressão mais simples e concreta no bastão! O bastão não apenas representa um eixo, o bastão é um eixo! Se adaptarmos em cada uma de suas extremidades uma roda, o bastão integra as duas em um movimento uniforme. O eixo permite a integração harmônica entre as partes. Se nossos movimentos não estiverem bem integrados e coordenados, as diferentes partes do nosso corpo trabalham umas contra as outras e há um desperdício de energia muscular ou li. Segundo lembra o mestre Zhang Yun, geralmente nós não estamos integrados em nossa vida normal porque, quase sempre, fazemos poucas coisas que requerem integração. A maioria dos objetos que manipulamos no dia a dia é, normalmente, leve, exigindo apenas a mobilização do nosso braço, isoladamente. Assim, sem notar, tornamonos  experts no isolamento e não na integração. É preciso, portanto, alterar esse padrão inconsciente. Observe seu comportamento ao empurrar um objeto, por exemplo. Se está usando apenas a musculatura dos seus braços, a energia muscular ou li está sendo mobilizada de forma isolada e não integrada, o que gera tensão e impede o relaxamento profundo necessário para gerar o JING. Fica-se tenso, pois cem por cento da carga é suportada isoladamente pelos braços, quando deveria estar harmonicamente distribuída por todo o corpo.

Na prática do Tai Ji Chuan a integração energética que gera o JING pode ser trabalhada de três formas, todas as três sendo enriquecidas pelo uso do bastão:

1) A prática das sequências
2) A prática do Zhan Zhuang ou meditação na postura
3) A prática do Tui Shou ou trabalho em dupla

Em cada uma dessas práticas, o bastão contribui para externalizar e explicitar a energia interna. Na prática das rotinas, o desenvolvimento da coordenação entreos movimentos dos braços, por exemplo, é facilitado
pela conexão obrigatória exigida pelo bastão quando segurado pelas duas mãos. Por outro lado, ao passar
pela perna, o bastão sinaliza de modo bastante claro a coordenação entre a parte inferior e a superior do
corpo. Analise, por exemplo, o movimento da sequência conhecido como golpe de baixo para cima à direita eà esquerda, em que o bastão, guiado pelos dois braços que estão necessariamente integrados, pois encontramse ligados ao bastão como em um eixo, descreve uma trajetória de baixo para cima em coordenação com os movimentos das pernas. Ao passar pelas pernas, o bastão sinaliza explicitamente a sua movimentação. Assim, o bastão contribui para a integração entre as partes, ajudandonos a sermos experts na integração e não no isolamento e,consequentemente, nos ensinando – mestre que é – a gerar JING. É comum os praticantes relatarem que, após aprenderem rotinas com o bastão, a sua habilidade nas sequências de mãos vazias também atinge um patamar superior. Na prática da meditação na postura, o bastão
também apresenta diferencial interessante. Esta prática é tradicionalmente recomendada para o desenvolvimento do JING. Segundo o mestre Garofalo, através da meditação na postura pode-se cultivar plenamente “a força interna, a estabilidade, a grandiosidade, a imobilidade, a integridade, projetando-nos além do mundano, onde as enxurradas de estímulos, ideias e emoções atuam para nos fragmentar”. Como companheiro do peregrino nesta viagem interior, o bastão, novamente, pode ser nosso fiel aliado, enfatizando
e promovendo a integração entre as partes. No início da prática, a tensão e a fragmentação tentam se impor, exigindo disciplina e concentração para obter o sentimento holístico gerador do JING. Experimente manter a postura do pilar universal com o bastão e perceberá que o sentimento de integração pode ser mais diretamente invocado, beneficiando, posteriormente, a meditação de mãos vazias. Finalmente, nas práticas a dois, o bastão também atua como “antena” desenvolvendo a acuidade de nossa percepção da energia do outro e da nossa própria. 

No exercício de tui shou com o bastão, novamente, o sentimento de integridade da movimentação do indivíduo no conjunto é valorizado pelo bastão que contribui para desenvolver nossa sensibilidade e resposta, ligando, como eixo, nossas mãos ao Dan Tien e nos ensinando a fazer como os antigos alquimistas, mexendo o elixir em seus caldeirões. 


Sequência do Bastão
 A sequência do bastão, abaixo descrita, foi originalmente concebida pelos monges Shaolin, na China, para o desenvolvimento integrado do corpo, mente e espírito.Foi introduzida no Brasil pelo Mestre Hu. O grupo Totao adaptou e pratica esta sequência dentro do espírito do Tai Ji Chuan: movimentos, em geral, suaves, contínuos, promovendo acirculação do chi e o desenvolvimento do jing.

1. Erguer o bastão
2. Golpe à esquerda
3. Golpe de baixo para cima
4. Diagonal
5. Golpe na cintura
6. Circular o bastão
7. Bastão sob o braço direito, varrendo
8. Posição da guarda
9. Diagonal
10. Posição da guarda
11. Cantar o bastão
12. Defender à esquerda
13. Salto do macaco
14. Defender à direita
15. Circular o bastão por trás e por cima
16. Posição da guarda
17. Varrer à esquerda e à direita
18. Chicote
19. Golpe de baixo para cima com passo direito
20. Espetar a lança
21. Bater, circular e chutar
22. Defender à esquerda e à direita
23. Lançar a perna esq. e adotar posição da guarda
24. Debaixo do braço esquerdo e varrer
25. Posição da guarda
26. Diagonal
27. Posição da guarda
28. Defender
29. Salto do macaco
30. Circular o bastão à esquerda e à direita
31. Bastão sob o braço esquerdo, varrer e bater
32. Levantar e guardar
33. Recuar e defender
34. Defender em espiral em duas direções
35. Saltar nas 4 direções
36. Varrer e bater o bastão
37. Bater o bastão à frente
38. Estocar o bastão
39. Circular o bastão
40. Fechamento

Por Marcus Maia - UFRJ
Fonte:www.RevistaTaiChiBrasil.com.br

 by Taichirajá I



Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Em cada movimento o homem sábio
segue o caminho perfeito".
Lao Tsé

Obrigada pela visita e pelo comentário.
Volte Sempre!